A verdade da mentira



Bom, o assunto é sério e o assunto é vasto. Vamos por partes.


As leiloeiras têm o negócio de sonho: revendem bens com uma taxa de inflacção inacreditável, num mercado ávido por obras de arte moderna e contemporânea. São intermediários que enriquecem com comissões generosas, e ainda por cima hoje em dia a cada novo leilão todos os anteriores recordes são pulverizados. Portanto, 5% de 100 milhões é bem melhor que 5% de 1 milhão - matemática simples, verbo fácil de conjugar.

E estas pessoas têm gostos caros, ok, mas são seres simples, muito muito simples.

Mas, o problema começa aqui mesmo: se criaram procura – ou melhor, se essa procura já existe e é espicaçada por um esquema de marketing muito competente – têm de assegurar a mercadoria nas prateleiras no momento seguinte; ou seja, há que encontrar suficientes telas dos autores certos de pessoas que queiram vender pelo preço o mais alto possível.

Falar a linguagem do dinheiro dá muito jeito nestes meandros: perde-se menos tempo assim. Onde se vende em hasta pública arte, quem a fez - o artista - está claramente a mais. Estes Tempo$ não são para lirismos. Nada de Vieira da Silva, tudo de Trump.

Este mercado é milionário, sim, mas baseia-se – como tudo nesta vida – na relação procura/ oferta. E a oferta por vezes é escassa, para tanta procura de yuppies recém chegados ao mundo da arte em busca da promoção social e estatuto que pinturas de autores célebres proporcionam no imediato. E isso - muita procura e pouca oferta - vai fazer subir os preços em flecha, como é óbvio.


Vamos agora ver a questão de um outro ponto de vista – o ponto de vista das falsificações, um assunto bastante controverso e espinhoso.

Dizia um destes dias um falsificador muito famoso - um dos poucos que foram realmente apanhados em flagrante - em entrevista ao 60 Minutos que, olhando para os mais importantes museus – MUSEUS ! Não galerias, museus, pasme-se… - via muitas das suas falsificações lá expostas, como sendo originais, claro está. E sentia orgulho. E mais não falava porque claramente sabia muito do que dizia - sabia demais. E quem sabe demais mais cedo ou mais tarde acaba mal.

Ele - apenas ele, mas provavelmente existem muitos como ele - introduziu centenas de obras no mercado utilizando artifícios e uma narrativa irresistível que incluiu fotografias falsificadas, uma história familiar totalmente inventada e poética, as tintas certas, as telas do período temporal certo compradas em feiras de arte e toda uma mise en céne que era difícil de não acreditar e até fácil de gostar.

Neste momento no mercado americano os pretensos especialistas de arte contemporânea recusam-se – ouviram bem, RECUSAM-SE – a autenticar obras de Jackson Pollock.

Porquê ?

Ora, é fácil de entender: porque os compradores não são totalmente burros e quando compreendem que compraram gato por lebre dirigem-se, não à galeria onde adquiriram o Klee ou Miró ou Ernst por centenas de milhar de dólares, mas ali ao lado ao Tribunal e processam o dono da galeria por lhes ter vendido uma falsificação.

E o dono da galeria depois pressiona quem lhe autenticou aquela obra e voilá – estão os dois metidos em sarilhos !

Ora, como quem autentica sabe onde o rio vai desaguar, prefere... evitar a praia !

É mais ao menos isto, o que se passa, actualmente.


Pois bem, vamos então juntar as duas coisas: a gigantesca procura de telas por parte de endinheirados pouco conhecedores de arte e a indústria que vive à custa da venda de obras de artistas famosos.

Eu serei breve, curto e grosso como dizem os nossos amigos brasileiros:

Acho estranho que leiloeiros experientes, galeristas a sério e curadores de museu não pressintam, no fundo, que por vezes aquilo que têm diante de si são apenas falsificações. Muitas vezes não têm provas suficientes, tudo bem, mas lá no seu íntimo devem pelo menos desconfiar - porque um verdadeiro especialista tem essa intuição.

E eu refiro este aspecto por uma única razão: parece-me bem - por alguns indícios de análise puramente sociológica, digamos assim - que o mercado está completamente inundado deste tipo de imitações - umas mais dissimuladas e perfeitinhas que as outras, mas ainda assim todas elas falsas como Judas e os seus malditos 30 dinheiros.

E eu aqui não estou a falar dos métodos tradicionais de despiste de falsificações, estilo análise da assinatura ou análise do tipo de tinta ou raio X ou ultra violeta ou o raio que o valha.

Estou a falar do olho humano, treinado, experimentado, ligado directamente a um coração, um cérebro e um corpo, pleno de sensibilidade e que já viu centenas de obras de um artista e que portanto sabe de A a Z tudo sobre o seu estilo de pintar, desde a temática à técnica, da forma à cor, da textura à geometria, do formato ao desenho, etc etc etc.

Talvez eu seja desconfiado, pouco crente no ser humano, eu posso bem com essas críticas, dessas venham mais cinco.

Eu, pessoalmente ? Sim, acho estranho. Como artista visual que sou, em alguns autores específicos eu topava a léguas essas cenas maradas, de um só relance.


Mas é aqui que entra o diabo, travestido de notas de dólar bem verdinhas.

Estas pessoas das leiloeiras que são pagas para dar espectáculo fácil, a bem dos números e dos lucros – e que entendem bem mais daquilo que vendem, do que os outros que compram – sabem bem que tudo isto é um castelo de cartas. Tanto a nível da inflacção galopante de autores desconhecidos que alguns promoveram a heróis da arte por arte$ mágica$, como a nível de problemas jurídicos que as imitações podem provocar num futuro bem próximo.

A credibilidade do negócio está por um fio.

Os museus também já entraram na dança, e hoje há uma parceria pouco escondida entre o que fazem as galerias e o que fazem os museus: 

1. Milionários compram e inflaccionam e revendem com lucro;
2. Galerias valorizam;
3. Finalmente os museus compram e em princípio acaba-se o ciclo de vida útil.

As pessoas ou são as mesmas de instituição para instituição ou conhecem-se bem - muito bem - umas às outras.

Tudo isto num sistema egocêntrico e autofágico e petulante e que exibe sinais preocupantes de ares de superioridade. 

O que eu estou a analisar é sobretudo o sistema da arte nos EUA, mas se encontrarem semelhanças com a realidade portuguesa, podem generalizar, sem medo de grande margem de erro, já que não se trata concerteza de pura coincidência.


Eu não sei o que vai acontecer a médio prazo, mas cheira-me que isto não vai acabar nada bem…

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